A Sublevação Predicativa
Por Said Barbosa Dib*
É tarde da noite. Dia cansativo de trabalho na “repartição”. Mesmo assim, inspirado, o poeta se senta à escrivaninha. Resolve fazer uma composição. O tema - claro! - mulheres. Tinha conhecido uma jovem bonita e muito atraente. Como de costume, acende o cigarro, posiciona-se na cadeira. Dá um trago profundo, coloca uma das mãos na testa e, franzindo a semblante, olha para cima, como se pudesse apanhar as primeiras palavras na fumaça que se dissipa.Na folha de papel, o inusitado: o Verbo, revoltado com o Substantivo, dá pití. Nega-se a agir. Gesticulando acintosamente as mãos - como se fosse uma matrona italiana daqueles cortiços sujos de São Paulo do século XIX -, lança desaforos indignados. Acusa o companheiro antigo de frase de o estar explorando. Um desabafo verdadeiramente sentido e como que contido nos últimos sete mil anos de escrita. O Substantivo, assombrado, no início não sabe como reagir ou o que dizer. Com aquele olhar esnobe de lorde inglês, arqueando a sobrancelha direita, tenta acalmar o amigo apenas não dizendo nada e fingindo entender o que se passa. Bate-lhe compassadamente a mão direita nas costas e arqueia a fronte com seriedade rumo ao companheiro, como se o tivesse confortando. Procura perdoar o que considera sinceramente “um ato irracional”, um comportamento ridículo, mesmo.Quando a explosão verborrágica parece terminar, o Substantivo apenas tenta ponderar com aquela lenta e cansativa retórica, que lhe é peculiar:- “Maaasss... meu caro Verbo, velho amigo e companheiro, acalma-te! No sistema de classificação das palavras as coisas são assim mesmo. Cada um tem a sua missão natural. Eu sou, alguns me ajudam a agir, outros qualificam o que faço. Mas, tenho consciência de que sou o sujeito ativo de tudo isso. É tarefa muito pesada para mim, mas procuro fazer o melhor. É assim que, há muito, as coisas funcionam. Não podem ser mudadas agora. É a ordem adequada e harmônica das funções das palavras. A minha foi, é e sempre será a de dar nome ao que existe e ao que não existe. Sou aquele que determina o Ser de tudo que há...”.E por aí enveredou o discurso do Substantivo... . Mas, apenas para conter, momentaneamente, a ira do colega, precisando ser diplomático e dando uma amenizada na situação, completou sem muita sinceridade:- “Reconheço, tu és um grande auxiliar, um importante colaborador. Preciso de tua participação, pois me ajuda a dar movimento ao mundo, ou seja, sem teu apoio em todo este magnífico esquema tudo ficaria tediosamente parado...”.Mal o Substantivo termina de falar, o Verbo não se contém. Com o peso de mil elefantes, caem-lhe à mente as expressões “auxiliar”, “colaborador”, “ajuda” e “apoio”. E, de imediato, retruca:- “Tuas palavras são a tua confissão, miserável sanguessuga! Tu és autoritário e arrogante, um egoísta insuportável. Achas que tudo que existe, existe para lhe servir. Esta prepotência descomunal é justamente o que me deixa revoltado, pois não adianta apenas que as coisas do mundo sejam. Elas têm necessidade imperiosa da ação, que é o que faço”.E demonstrando a fonte “subversiva” de onde bebera tanta rebeldia, tenta explicar: (...)
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