sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

A ERA DA CHICLÉTICA

Ivan Dutra Faria
Ao tentarmos interpretar as questões globais da atualidade, defrontamo-nos com um conflito maior que, cada vez mais, se destaca entre tantos outros. Constatamos que, além da dissolução das tradicionais fronteiras temáticas – entre política, cultura, ciência, economia e meio ambiente – somos colocados diante de uma ruptura de limites éticos. Em um ambiente complexo como o da atualidade, estamos interconectados de tal forma que as abordagens simples e segmentadas não são suficientes para explicar a realidade. Por outro lado, o risco de nos perdermos nessa complexidade é cada vez maior.
A velocidade com que as informações são produzidas e disseminadas no mundo atual vem tornando relativas a ética, a moral e a ideologia. Essa relativização começa pelo lugar-comum, nos dias de hoje, em que se afirma não haver existido antes, na história da humanidade, uma época em que as pessoas fossem tão bem informadas. Trata-se de uma verdade relativa. Há diferenças importantes entre informação e conhecimento. E, a cada dia, diminui-se o tempo necessário para se transformar as uvas da informação no vinho do conhecimento. Não se trata apenas de ficar desinformado pelo excesso de informação. Trata-se, também, da perda de referência ética, moral e ideológica que está em questão. A globalização dos sistemas econômicos nacionais abriu uma simbólica caixa de pequenos trabalhadores invisíveis, mobilizados em uma diuturna tarefa homogeneizadora de culturas, que não possuem quaisquer freios morais, éticos ou ideológicos. Esses duendes da globalização produzem informações durante vinte e quatro horas por dia, criando forças desenvolvimentistas capazes de destruir culturas e, por conseqüência, ambientes, em períodos extremamente curtos.
Teoricamente, essas informações poderiam ser coletadas, sistematizadas e disseminadas para constituir a base da participação da sociedade na construção do seu futuro. Acontece que esse conjunto de ações é cada vez mais difícil de ser executado, por conta do volume de informações disponíveis, por causa da superficialidade de tratamento e análise, em razão da criação e destruição acelerada de estereótipos, mitos e teorias.
Tudo isso produz uma sociedade atordoada que, no limite, perderá a crença em qualquer forma de utopia, substituindo sonhos por cinismo. O processo já está em curso. A superexposição da violência, a banalização do roubo e a sistematização da vulgaridade compõem o atalho para que o ato de esticar a ética, justificando cada um dos seus atos, por mais condenáveis que sejam, se torne uma “qualidade” individual. Em uma das cenas mais marcantes do filme “Obrigado por fumar”, de Jason Reitman, o personagem principal, um lobista da indústria do tabaco, pergunta à platéia de uma audiência, no senado dos Estados Unidos, se havia alguém naquele recinto capaz de acreditar que o cigarro não faz mal à saúde. Obviamente que não havia. O lobista indaga, então, qual a razão de se aprovar uma lei que obriga a colocação do símbolo clássico para a indicação de venenos, a caveira, nos maços de cigarros. E arremata, afirmando que a tarefa de evitar que uma criança ou um adolescente venha a se transformar em um fumante é da responsabilidade dos pais e das escolas.
Em resumo, o personagem do ator Aaron Eckhart diz que tal tarefa faz parte da educação e, por isso mesmo, é dever dos pais. Mas, lavar as mãos e deixar que as campanhas na mídia façam esse trabalho é, convenhamos, bem mais cômodo. “Obrigado por fumar” pode parecer, pelo título, uma apologia ao consumo de cigarros. Não é. Comédia de humor negro, o filme propõe uma reflexão acerca de nossa sociedade atual, especialmente no que se refere à ética. Ao longo do roteiro baseado no livro de Christopher Buckley, trafega a “culture of spin" – a cultura de manipulação das informações.
John Kenneth Galbraith afirmou ser possível defender otimamente uma sociedade que procura satisfazer as necessidades do consumidor, mesmo que estas tenham origens estranhas, frívolas e até imorais. Mas a defesa perde o sentido se é o processo de satisfazer necessidades que as cria, disse Galbraith, em “A Sociedade Afluente”. O processo que cria necessidades pode estar na estratégia da indústria do tabaco. Mas, também, pode estar na “indústria” de indenizações que os advogados americanos criaram. É simples surrar um adversário encurralado por uma sociedade envolta em uma nuvem de puritanismo e xenofobia crescentes. O mesmo puritanismo que promove o apoio a um governo que se recusa a assinar o Protocolo de Kyoto. A mesma xenofobia que impede a percepção dos problemas ambientais globais como, também, seus.
Em outra obra, Galbraith afirma que a frase de Karl Marx “De cada um, de acordo com a sua capacidade; a cada um, de acordo com as suas necessidades”, de “O Capital”, foi mais revolucionária que os volumes da obra inteira. No entanto, prevê que somente quando a nossa sociedade estiver mais amadurecida poderemos compreender essa frase.
Talvez o grande mestre estivesse sendo otimista, pois o que se vê na sociedade atual é uma ética flexível que redefine cínica e diuturnamente os conceitos de capacidade e necessidade. Talvez o seu proverbial humor não resistisse a denominar estes tempos de “A Era da Chiclética”. Um tempo da mais elástica concepção de certo e errado que talvez a humanidade tenha vivido. Se não há limites na ambição humana, não existe ética. Desde que seja para atingir seus objetivos, tudo vale. Vale roubar, vale mentir e, pior ainda, justificar cada um desses atos, como se os dignos do inferno fossem os outros. Quando se percebe que os objetivos traçados não serão atingidos, reduz-se – ou elimina-se – o rigor da ética.
A ética elástica funciona como uma cama de acrobatas. Fugindo dos fatos assustadores que apontam para a necessidade de uma mudança no supremo domínio do mercado, os ginastas da ética se apropriaram, sem pudor algum, do conceito de sustentabilidade. Na Câmara Municipal do mais remoto município brasileiro, o quinto vereador à direita da porta tem o mesmo discurso do ilustre orador de Davos. Desenvolvimento sustentável é o mote, tão flexível quanto um elastômero de última geração.
Nos extremos desta era podem ser identificados dois exemplos que elastecem as utopias atuais, sonsas e dissimuladas como um olhar de Capitú para “O Capital”. A China e a África sob o Saara, dois mundos à parte, representam axiomas da “Chiclética”. A China? É um grande mercado, um tigre gigante e digno de admiração irrestrita. Não possui água, solo agricultável e matérias-primas para sustentar seu crescimento. Mas é o objetivo estratégico das grandes estruturas financeiras e industriais do planeta. No grande chiclete, ela se desenvolve primeiro e se sustenta mais tarde, quando o Deus Mercado der bom tempo. A África? Não é um mercado, certamente por culpa de sua incompetência atávica. Por isso mesmo, les médecins sans frontièrs são bastantes para sustentá-la, já que seus habitantes não conseguem um desenvolvimento capaz de iniciar um processo que crie necessidades compatíveis com a indústria da satisfação. Desenvolvimento sustentável, nesse caso, é não morrer.
Ivan Dutra Faria
Consultor Legislativo do Senado Federal
Área de Meio Ambiente

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