terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

SOBERANIA NACIONAL

Kosovo, Roraima e protetorados
Nilder Costa, engenheiro

Poucos discordam que a auto-declaração unilateral de independência do Kosovo constitui uma séria ameaça às relações internacionais. O governo brasileiro anunciou que só a reconhecerá quando resultar de um acordo político com a Sérvia, sob a condução das Organizações das Nações Unidas (ONU), por temer um ‘efeito cascata’ mundo afora, em especial nos países com população fragmentada. O chanceler Celso Amorim revelou as preocupações brasileiras com o processo ao reclamar que as Nações Unidas foram colocadas em ‘segundo plano’ pelos países que já reconheceram a independência do Kosovo. [1] Já o presidente russo Vladimir Putin foi mais incisivo e ameaçou a União Européia e a OTAN de usar a força na região, alertando que a independência do Kosovo é um precedente terrível que se voltará contra os países ocidentais: ‘Este precedente do Kosovo acabará destruindo todo o sistema de relações internacionais, desenvolvido não por décadas, mas por séculos. [2] Como pano de fundo desse processo se encontra a aplicação de um impiedoso ‘princípio das etnias’ em lugar do tradicional ‘princípio da cidadania’, segundo o geógrafo Demétrio Magnoli, para quem a atual ‘balcanização dos Bálcãs’ é um fruto direto da existência da União Européia e das estratégias políticas dos governos dos EUA e das potências da Europa:

Montenegro, que declarou sua independência da Sérvia há dois anos, começou a inventar-se como nação étnica em 1993, fabricando às pressas um passado autônomo e uma língua nacional. A sua soberania não passa de uma casca vazia, preenchida pelo conteúdo emprestado das instituições e da moeda da União Européia. Kosovo nasce agora como mais um protetorado da União Européia, defendido por tropas européias, estabilizado por policiais europeus e dotado de um corpo de leis escrito por um exército de juristas enviado por Bruxelas.[3]

O ‘princípio das etnias’ é o mesmo que vem sendo utilizado para justificar a criação de imensas reservas indígenas no Brasil. Não cabe neste espaço analisar o assim chamado etnonacionalismo como fase superior de um indigenismo que ameaça desencadear um processo similar de ‘balcanização’ em nosso País (ver o capítulo “A carta ‘indigenista’ contra o Estado nacional” do livro “Máfia Verde 2: ambientalismo, novo colonialismo”, Capax Dei Editora, 2005), com destaque para o conflituoso processo em curso para a demarcação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima. Existem fortes indícios que a Polícia Federal se prepara para desencadear uma verdadeira operação de guerra para desalojar arrozeiros e outros segmentos da população que se recusam a ser ‘desintrusados’ da área da reserva, homologada pelo presidente Lula à revelia do governo e da sociedade roraimense, do Congresso Nacional e do Exército Brasileiro, apenas para citar alguns. De fato, como já analisado por este Alerta, o imbróglio causou mesmo uma crise militar no governo Lula. [4]Em um quadro mundial onde as relações internacionais se decompõem rapidamente, não faltam as evidências que poderosos estratos do Establishment anglo-americano movem seus pauzinhos para ampliar ainda mais a sua hegemonia no Caribe que, sob sua ótica geoestratégica, inclui a riquíssima Ilha de Guiana, formada pelo Oceano Atlântico e os rios Orenoco, Cassiquiare, Negro e Amazonas, onde Roraima ocupa uma posição central. Dentre outras manobras, passou quase despercebida a tentativa dos EUA, em 2004, de estabelecer no Haiti uma espécie de protetorado baseado exatamente no precedente da região de Kosovo onde, na ocasião, o Exército de Libertação do Kosovo (ELK) que, mesmo acusado de manter vínculos com a ‘Máfia Albanesa’, se metamorfoseava em uma força policial ‘legal’ sob os auspícios da ONU. Quem fez a denúncia foi o respeitado jornalista canadense Anthony Fenton ao revelar que a Agência de Desenvolvimento Internacional dos EUA (USAID) estava empregando elementos do ELK como ‘assessores’ na reintegração de militares do antigo Exército haitiano, desmobilizado pelo ex-presidente Jean-Bertrand Aristide. [5] Mais recentemente, o governo da Guiana retornou, na prática, à sua condição colonial ao permitir que a sua antiga metrópole - o Reino Unido - se encarregasse de gerenciar as suas florestas a câmbio de um pacote financeiro para o ‘desenvolvimento sustentável’ do País, configurando assim o surgimento de um novo tipo de protetorado pós-moderno, o ‘ambiental’. A partir dessa nova posição privilegiada, a visão de uma Raposa-Serra do Sol ‘desintrusada’ açularia o velho apetite do ex-Império Britânico para conquistar, um século depois, aquela parte do território brasileiro que reivindicara como sendo seu, mas que não levou na ocasião (caso Pirara). [6] Outrossim, não há que perder-se de vista a ainda fresca visita do presidente Nicolas Sarkozy à Guiana Francesa - departamento ultramarino francês onde se localiza o estratégico Centro Espacial de Kourou – para selar, com o presidente Lula, o acordo para a construção de uma ponte internacional entre os dois países, que muitos interpretam como um claro movimento para criar um pólo de atração geoeconômico francês em uma região onde a presença brasileira é rala e desconectada do restante do País. Mas quiçá o mais preocupante é a ostensiva atuação da mesma USAID na região, por meio do seu famigerado programa Iniciativa para Conservação da Bacia Amazônica (ABCI, na sigla em inglês), onde não oculta o propósito de recrutar povos indígenas, "populações tradicionais" e ONGs nacionais e estrangeiras para criar uma rede que em nada difere de um exército de ocupação pós-moderno a serviço de um esquema de "governo mundial" controlado por grupos hegemônicos do Establishment anglo-americano. Tal ofensiva foi denunciada no memorando ‘USAID planeja a ocupação da Amazônia’, publicado por este Alerta em maio do ano passado, do qual destacamos o trecho e o mapa abaixos:

"Por outro lado, um número crescente de organizações indígenas amazônicas reconhece que o sucesso na luta por terra significa pouco se estas terras não forem administradas efetivamente. Por toda a Bacia Amazônica, especialmente no Brasil, vários movimentos indígenas estão sofrendo a transição da luta por terra para a administração de seus territórios, que exige uma série de competências diferentes. Este programa [ABCI] busca responder ao desejo das organizações indígenas amazônicas para apoio no fortalecimento de sua efetividade.Portanto, a ação da USAID propõe uma "gestão ambiental de terras indígenas", especialmente nessas áreas de fronteira, para dar capacidade às organizações indígenas de determinar as políticas de "distribuição de direitos sobre os recursos naturais". Ou seja, a intenção é que as organizações indígenas controladas pela rede de ONGs internacionais possam definir a utilização dos recursos minerais ou energéticos. No caso, a estratégia visa fortalecer a capacidade de "pelo menos 20 federações indígenas amazônicas". Além disto, o "treinamento in situ e a capacitação focalizarão áreas que estas organizações identificaram como estrategicamente vitais".
Áreas transfronteiriças de interesse para a USAID onde se destaca Roraima (no. 2)

A todas as luzes, se o Brasil não acordar para esse perigo geoestratégico que se desenha em Roraima, corre o sério risco de ver inaugurado, em trecho do seu ex-território, um outro tipo de protetorado pós-moderno: o indígena.
Notas:
[1]Brasil só reconhece Kosovo se houver acordo com Sérvia, Agência Estado, 22/02/2008
[2]Kosovo: Rússia ameaça UE e Otan de usar força, O Globo, 23/02/2008
[3]Etnia ou cidadania, O Globo, 21/02/2008
[4]A batalha de Roraima, Alerta Científico e Ambiental, 15/09/2007
[5]Haiti: "modelo Kosovo"?, Resenha Estratégica, 20/11/2004
[6]Uma lição inglesa para Roraima, Alerta Científico e Ambiental, 28/11/2007

Protetorado: território ou país que, no direito internacional, possui certos atributos de Estado independente, porém, sob outros aspectos, está subordinado a uma potência que decide sua política externa e tem a obrigação de o proteger e, às vezes, controla internamente seu governo, seu judiciário e suas instituições financeiras (Dicionário Houaiss)

Para maiores informações sobre o assunto, não deixe de conferir:
http://www.alerta.inf.br/Geral/1265.html

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