sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

De como e porque George Soros seduziu ao próprio Demônio


Said Barbosa Dib, historiador, analista político e pai

Adaptação do conto "O Demônio Tentado", do genial italiano Giovanni Papini, com algumas pitadas diabólicas da "teoria da reificação" de Karl Marx.

Ontem, depois de mais um dia tenso e histérico na Bolsa de Valores, após horas cansativas ao telefone, instruindo meus empregados no Banco Central do Brasil, sonhei uma estranha aventura. Esta manhã a realizei, esta noite a conto. Que me ouçam todos os que têm senso bastante para acreditar na realidade do que não poderia suceder.
O Demônio, que me aparece freqüentemente em sonhos, que acompanha todos os meus passos e meus negócios, ontem à noite me apareceu de uma forma mais contundente. Pensei ser apenas mais uma dica financeira, uma catástrofe anunciada, uma revolução, uma guerra ou coisa parecida que pudesse me favorecer. Mas, não. Desta vez, sonhei com ele de uma forma diferente e foi um caso de tentação. Mas não era ele, vede-o bem, quem me tentava, era eu que tentava ao demônio. O sonho foi tão imprevisto e forte, que despertei sobressaltado e todo o resto da noite não pude deixar de pensar naquela cena insólita, naquelas palavras ouvidas em poucos instantes.
Esta manhã, persuadi-me de que não havia outro meio de livrar-me daquela estranha visão noturna, senão fazê-la real na vigília; e, sem mais refletir, me pus em ação.
Ao fim da rua onde está minha casa, esperava-me o Demônio. Supus, primeiramente, que ele estava ciente do sonho e que ele próprio era quem o havia provocado, para zombar de mim. Estava a ponto de voltar sobre os meus passos, um tanto assustado, quando me recordei que, dias antes, tínhamos combinado um encontro para ir visitar um velho jardim numa mansão de um amigo, que já muitas vezes protegera, com sua sinistra privacidade, os nossos diálogos.
E partimos, silenciosos, sem sequer nos cumprimentarmos. Ao sairmos, fora da cidade, o Demônio continuou sem proferir palavra, mas o sonho me reapareceu mais vivaz e imperioso do que nunca; e eu tive de morder os lábios.
Não falei. Como iniciar ante aquele obstinado silêncio?
Chegamos, por fim, ao jardim nos subúrbios de Nova York, onde um velho cipreste balançava lentamente o alto cimo, com um ar de impaciência e de censura. Sentamo-nos com as costas apoiadas ao amplo e maciço tronco e o Demônio continuou calado. Estava ali, com uma expressão compenetrada e com sua costumeira sobriedade. Então, como se no mais profundo de mim se houvesse aberto de repente algum veio interior, senti borbulhar e sair aos borbotões as palavras que deveria dizer. E falei ao Demônio, numa ansiedade excitante de quem acabara de arriscar milhões no mercado de capitais, desta maneira:

“Mestre e amigo: chegou para ti o dia da tentação. Tu não és capaz de tentar aos homens como antes e sucede que os homens vêm tentar-te. Conseguiste-o com Adão, fracassaste com Jesus; mas não és nem homem nem Deus e eu sou um homem que se vai convertendo em Deus. Posso comprar tudo e todos, sou o poder inexorável de uma nova divindade: o Mercado, o demiurgo que constrói e destrói tudo no Mundo. Chamo-me George Soros e, por isso, tenho o direito e a força de induzir-te em tentação para vingar a Adão e a seus filhos.
Tu ofereceste aos primeiros homens a divindade, a Cristo o reino da Terra, a Fausto o poder e o sucesso. Mas eu te ofereço algo muito melhor; eu te ofereço, não te converter em um arremedo de Deus, mas proponho fazer-te o verdadeiro inimigo de Deus, o definitivo destruidor do Ser.
Dizem que és o grande adversário do Senhor, e o grande negador e corruptor das coisas. Mas não é verdade. Tentaste imitar a Deus com milagres, agiste e governaste como Ele. Tu O copiaste e O seguiste, como um hábil macaco arremeda o seu dono. Na verdade, tens sido apenas um fantoche, um títere do Onipotente. Se fosses verdadeiramente a antítese, o contrário de Deus, teria podido fazer, de há muito, o contrário do que Ele fez – terias deixado de suscitar anti-Papas e Anticristos e te haverias convertido no verdadeiro Anti-Deus. Qual foi a grande obra de Deus? A criação do Mundo. Qual deveria ser a tua grande obra? A destruição do Mundo. Tu deverias – compreendes? – não desordenar e complicar o Mundo, mas, deixando a sombra do Eterno, devias destruí-lo, suprimi-lo, aniquilá-lo.
Como pudeste tolerar, covarde jactancioso, que o mundo continuasse existindo? Como não soubeste, cósmico revolucionário, partir pelo meio o Universo? Quando conseguirá dar a grande resposta ao Fiat de Deus, contestar-Lhe, depois de uma pausa de alguns milênios, com um Pereat ainda mais potente?
Enquanto fizeres as costumeiras e medíocres travessuras ao Senhor, enquanto lhe disputares algumas almas pusilânimes, enquanto não faças mais que sublevar alguma parte do Céu e da terra, será infiel à tua missão, que é de ser o reverso de Deus. Em nome de alguns homens de Wall Street, cansados destas pretensas batalhas, venho intimar-te a que cumpras com o teu dever... ou desapareças!
Eu te direi, se o quiseres, de que modo podem conduzir o mundo - a Criação máxima de Deus - a seu fim. É necessário que mudes completamente o teu modo de agir. Tens sido até agora um corruptor e um desordenador, um espírito móbil e múltiplo, um criador de movimentos e mudanças. Tudo isto é perfeitamente estúpido e não cabe mais no Mundo globalizado e competitivo de hoje. Tu sabes que o movimento é a mudança do tempo e que a mudança é a criação de diferenças; e que a realidade é o conjunto das coisas diversas. Como na minha especialidade, a diversidade não cabe mais no império do Mercado, porque as diferenças são perigosas e de difícil administração e operacionalização. A realidade é tanto maior quanto mais numerosas são as diferenças que, pelo seu caráter subversivo, devem ser apagadas, suprimidas, aniquiladas. Aumentar as diferenças, portanto, quer dizer mover e mudar; é aumentar as realidades; diminuir as diferenças, quer dizer imobilizar e, igualar verticalmente, é diminuir as realidades.
Aí está o grande segredo.
Os homens tentaram esta morte da realidade por meio das palavras, as quais servem para as classes de coisas e não para cada coisa diversa; quer dizer, consideram certo grupo de coisas como as mesmas por aquilo que as faz semelhantes. Alguns homens, a que o vulgo chama filósofos, isto é, enamorados da sabedoria, foram ainda mais longe que os outros e tentaram reduzir todo o mundo, com a sua infinita variedade de movimento e de formas, toda sua rica pluralidade, a uma só palavra, a um só conceito, a uma só doutrina. Depois disto, entoaram hinos a si próprios e acreditaram que tinham posto a palavra "FIM" no livro do Universo, no caminhar da História. Mas não se deram conta de que essa palavra, precisamente porque pretendia encerrar tudo e negava toda diferença, já não continha realidade alguma. No mundo das idéias o único se chama inconcebível, no Mundo das coisas o único se chama inexistente – assim como no mudo do Mercado o único se chama destruição e lucro. Por isso, eu e meus pares da plutocracia mundial, estamos, como as danáides gregas, a encher seus tonéis sem fundo, na vã tentativa de destruir a irritante, cansativa e insubmissa variedade e singularidade de todos os povos, nações, culturas; de todos os valores e idiossincrasias do planeta, sufocando-os nos grilhões do capital sob o nome pomposo de "globalização". Seguimos os ensinamentos que nos deste há muito. Criamos o império dourado do dinheiro e transformamos tudo e todos em uma só coisa que pode ser quantificada, expressa em números e rendimentos de nossos investimentos. Quero transformar o Mundo na minha imagem e semelhança, tornando-o uno, indivizível, unânime, seco, frio, redondo, opaco, fácil... como uma batida de funeral.
Hoje, o que está à minha disposição por meio do dinheiro, o que posso comprar, ou seja, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do dinheiro. O meu poder é tão grande como o do dinheiro. As suas qualidades são minhas. Hoje, sou o que posso comprar. Sou feio, mas posso comprar as mulheres mais bonitas. Assim sendo, descobri que não sou feio, já que o efeito da feiúra, o seu efeito repulsivo, é eliminado pela minha riqueza. Poderia ser manco, porém, a minha fortuna facultar-me-ia vinte e quatro mil pés gigantescos, portanto, não seria manco aos olhos dos outros; sou um homem mau, desonesto, sem escrúpulos, vingativo, mas sou encarado com respeito e admiração, convidado às festas e recepções do Lions, do Jókey Club e do Rotary. O meu dinheiro é encarado com respeito... e o mesmo acontece ao seu possuidor, que sou eu. O dinheiro é o bem mais elevado, pelo que, torno-me bom, a despeito de tudo e de todos; como o dinheiro me poupa o trabalho de ser desonesto, todos me consideram honesto. Sou obtuso, todavia, já que o dinheiro é o espírito real de todas as coisas nesse mundo que estamos criando, como pode faltar espírito e bondade ao seu possuidor? Transforma, pois, a lealdade em deslealdade, o amor em ódio, a virtude em vício, o vício em virtude, servos em senhores, senhores em servos, a insensatez em inteligência, a inteligência em insensatez.

Além disso, posso comprar as pessoas mais inteligentes; e se um homem tiver poder sobre os inteligentes, não o será mais que eles? Eu, que soube te ouvir, que por meio do dinheiro posso fazer tudo o que o coração humano pode desejar, não possuo porventura todas as virtudes humanas aos olhos da Humanidade? Por conseguinte, o meu dinheiro não transforma todas as minhas incapacidades no seu oposto? É! meu caro. Que coisa mais extraordinária! Devo a você o segredo da vida, do Universo: se o que mais possuo - o dinheiro - é o laço que me une à vida humana, à sociedade, à Natureza e aos demais homens, não será o laço de todos os laços? Portanto, não pode desfazer todos os laços? Não constitui, pois, da mesma forma, o meio universal da separação? Não é a verdadeira moeda de separação, mas, ao mesmo tempo, não é o verdadeiro meio de união, a força galvanizadora da sociedade? É o deus visível, capaz de transformar todas as qualidades humanas e naturais no seu termo oposto, o transformador e conversor universal de todas as coisas, aquilo que une impossibilidades extremas. É a prostituta universal, o proxeneta universal dos seres humanos e dos povos, a nadificação e a coisificação de tudo.
Mas isso tudo é tarefa vã, coisa de pequena monta, coisa de vassalo que sou, pois se restringe apenas à Terra e não ao Universo. Mas você, não! Se deixasse tua condição tacanha perante Deus, terias possibilidade de subverter todo o Cosmos. Seria preciso, apenas, que tu fizesses na realidade o que os filósofos fizeram unicamente em sonhos – deverias ser o filósofo operante com as coisas e não com as palavras. O homem filósofo quis reduzir o mundo a uma só palavra e terminou no nada lógico. Eu quero converter a pluralidade do Mundo na unicidade de meu próprio mundo financeiro... e termino no nada existencial do Mercado. Tu deverias reduzir o mundo a uma só coisa, ao nada autêntico, ao nada último e definitivo.
Indiquei-te o caminho. Tu, que ainda és poderoso, podes segui-lo. Funde, assimila, une, liga, nivela, iguala, suprime as diversidades; reduz todos os animais a um só, e este animal a uma planta e todas as plantas a esta planta e esta planta a um mineral e todos os minerais a este mineral, e este mineral e todos os corpos a um só corpo, todas as substâncias a uma só substância, todas as formas da força a uma só forma, e esta única forma da força ao único elemento da substância; e verás que o mundo pouco a pouco empalidece e se atenua e se desvanece; e tu mesmo e o próprio Deus sereis uma só coisa e esta única coisa formará parte do todo e desaparecerá com ele. Reverta a criação divina. Odeia as diversidades, persegue as distinções, detém os movimentos, impede as mudanças... e então serás verdadeiramente o Inimigo de Deus, o Cancelador da sua obra e o seu radical Renegador. Que a tua atividade se desenvolva, não para suscitar, mas para suprimir toda atividade. Alimenta a preguiça, provoca o êxtase, ajuda aos fabricantes de idéias gerais. Pouco a pouco, verás, o mundo se tornará seco como um asceta, frio como uma batida de funeral; e incolor como uma idéia.
Assim, oh! ingênuo maldito! Somente assim terás contestado, finalmente, ao Gênesis; e se alguém pudesse, depois disso, escrever, ver-se-ia obrigado a dizer que depois do fim não houve nem terra, nem céu, nem sequer abismos.

Deus verá desaparecer a obra de que ficou tão satisfeito e tu, velho exilado rebelde, ficará vingado. Ninguém te propôs nunca obra tamanha, ninguém te julgou capaz de tanto! Terás coragem e poder para rechaçar novamente o Universo ao nada de que foi tirado e lançar teu “Não“ contra o “Sim” milenário do Criador? Esta é a minha resposta à tua tentação, ó Demônio filho da puta! Tu me ofereceste ser Deus e eu... te ofereço ser algo mais forte do que Deus: o destruidor da sua grande obra, o primeiro e o último Anti-Deus".


Neste momento, as palavras deixaram de brotar-me da garganta e a fonte interna secou. Olhei para o meu companheiro, que até então havia escutado sem dizer palavra. Esperava que me respondesse sem mais demora, mas continuou calado, contemplando o sol que começava a diluir a névoa, além, sobre a planície. Do alto da colina onde se elevava o cipreste amigo, o mundo ia surgindo lentamente aos nossos olhos.
O vento esgarçava amontoados de nuvens e sibilava em surdina. E o Demônio olhava resignadamente o sol... e calava. Finalmente se pôs de pé, voltou-se para mim e disse, com voz decidida e resignada:

- “Vamos embora, não posso ficar mais tempo”.

Notei então que o Demônio chorava e vi pela primeira vez os seus olhos rasos de água. Lágrimas de pesar, de raiva, de alegria? Não sei. Durante o dia inteiro refleti sobre isto e não soube o que resolver. Agora, espero que a noite chegue para perguntar-lhe, em sonhos.


Foto: http://www.abretelibro.com/


Informe-se sobre o genial Giovani Papini na WEB. Clique os links abaixo. Será algum começo.



Giovanni Papini - Wikipédia
[editar] Ligações externas. A vida de Giovanni Papini - Em português · Wikiquote. O Wikiquote tem uma coleção de citações de ou sobre: Giovanni Papini. t.wikipedia.org/wiki/Giovanni_Papini - 20k -



Giovanni Papini - Biblioteca do Equívoco
Obras de Giovanni Papini na Biblioteca do Equívoco, uma simples biblioteca online com consultas de acervo e informações sobre os autores.biblioteca.laudano.com.br/autor/1-giovanni-papini.html - 13k



Giovanni Papini - Menu
Confesso ter lido cada um dos 30 volumes de Papini pelo menos três vezes (e confesso isso sabendo que certos idiotas de espírito tornarão a apregoar meu ...
www.giovannipapini.it/Gianfalco/porto/menu.htm - 20k



Giovanni Papini
Papini advocated breaking with tradition and defering to the new generation, but after World War II he lost his influence as an opinion leader. ...www.kirjasto.sci.fi/papini.htm - 13k -

Olho da Letra: O espelho de Papini
O terceiro volume da colecção “A Biblioteca de Babel” reúne dez contos de Giovanni Papini, autor esquecido que Jorge Luis Borges recupera também do seu ...
olhodaletra.blogspot.com/2007/11/o-terceiro-volume-da-coleco-biblioteca.html - 60k -

Nenhum comentário:

Postar um comentário