quarta-feira, 26 de março de 2008

Bate-papo em Ipanema com Millôr Fernandes

Intelectual fala do Rio, de famosos, de mulheres, do vôlei


Por David Coimbra (Jornal "Zero Hora" - 25/7/2007 )


Millôr Fernandes em sua cobertura em Ipanema


Os olhos azuis de Millôr Fernandes cintilam de inteligência, enquanto ele fala, instalado numa poltrona da sala de estar de sua cobertura em Ipanema. Aí está um homem de conversa fácil. As idéias fluem com naturalidade, um pensamento encaixando-se perfeitamente no outro, sem vacilação, sem reticências. Millôr Fernandes não tem medo de dizer o que pensa.Mesmo assim, não gosta de dar entrevistas.

– Mas alguns pedidos não posso recusar – conforma-se.

Sorte dos leitores. Millôr não recusou o pedido de Zero Hora. A entrevista aconteceu na residência em que mora desde 1954, o apartamento tornado célebre entre a intelectualidade carioca como “a cobertura do Millôr”, na Praça General Osório. Já à porta de entrada, o visitante tem uma amostra da personalidade do homem que lá vive. Ao lado da campainha, está fixada uma placa de metal com a seguinte frase: “Aviso este ler conseguir para palerma por passar a estou que bocado bom um faz já”. Na mesma parede há um cartum de Jaguar no qual os personagens são o próprio cartunista e o dono da casa. Millôr pergunta:

– Jaguar, o que você disse quando encontrou o Ivan depois de 28 anos, seis meses e sete dias?Jaguar responde:

– Eu? Disse oi.

Junto ao balão da fala há um do pensamento de Jaguar: “Depois fiquei catatônico dois dias”.Embaixo da ilustração, o cartunista escreveu: “Millôr, que tudo sabe, querendo saber mais”. A impressão é essa mesmo. A de que Millôr tudo sabe. Não por acaso. São 83 anos de uma vida intensa. Millôr é jornalista, escritor, desenhista, humorista, dramaturgo, tradutor. Conheceu os mais importantes intelectuais brasileiros, entre eles Nelson Rodrigues, Vinicius de Moraes, Paulo Francis e David Nasser.

– Mas nunca conheci ninguém famoso.Quando conheci esses caras, eles estavam só começando, eu não tinha idéia de quem viriam a ser. Por exemplo, lembro de um magrinho que vinha conversar comigo e acabou se transformando no Dorival Caymmi. Sempre foi assim.
Essa convivência com grandes personagens da história brasileira não faz de Millôr um nostálgico. Ao contrário: ele é um entusiasmado com o presente.



Do apartamento, o escritor vê o mar de Ipanema, seu reduto de inspiração
Foto: MICHEL FILHO, AG, BD – 2/11/1999


– Estamos vivendo o melhor momento da história da Humanidade. Veja o cinema. Você já pensou em viver num mundo sem cinema? Nos séculos 17 e 18, o que eles faziam?Não havia nada para fazer. Hoje, o mundo está vivendo um show. E não há mais volta para isso. Vai ser cada vez mais assim. Você tem tudo com facilidade. Você tem a Internet, a TV a cabo, as revistas. A TV a cabo: existem muitos canais de História. Alguns são ruins, mas muitos são bons. Antes não havia nada disso. Não havia acesso a nada.
O fluxo de idéias de Millôr não cessa. A Revolução Russa. A Revolução Francesa. Napoleão Bonaparte. O telefone celular.

– O telefone celular! Eis uma revolução inescapável. O serviço que o telefone celular presta ao proletariado é imenso. E foi algo feito para o grã-fino. Mas, hoje, todos têm celular. O sujeito é um encanador, ele atende o celular na rua, ele liga e pergunta se pode passar na sua casa em meia hora. O telefone celular facilita a vida de todo mundo.
Sendo assim, quantos telefones celulares terá Millôr Fernandes?

– Nenhum. Não preciso de telefone celular.Não se trata de aversão à tecnologia.

Já em 1986, Millôr comprou um computador, para espanto dos amigos.

– Eles me perguntavam: “Para que você quer isso?” Ora, o computador, já naquela época, em que não existia Internet, era muito melhor do que a máquina de escrever!

Agora, Millôr tem o seu próprio site (http://www2.uol.com.br/millor/), lê todos os e-mails que recebe, responde os que pode, opera programas que o ajudam no trabalho.

– Mas não me venham com essa história de upgrade. O upgrade não me pega mais.
Internet, TV a cabo, telefone celular. Millôr sabe quem inventou tudo isso.

– Foram os vigaristas. O mundo é feito pelos vigaristas. As catedrais, as pirâmides, o Taj Mahal, quem fez tudo isso? Os déspotas. Os safados. Depois, claro, essas coisas são aproveitadas pelo proletariado. Como o telefone celular. Mas a gente não pode se iludir. Olha: não conheço ninguém cem por cento puro, mas conheço canalhas irretocáveis. Lógico que existem pessoas boas. Lógico que algumas pessoas são melhores do que as outras, mas não se pode fugir da natureza humana.
Uma Madre Teresa de Calcutá, do que ela precisa? Ela fede? É o cheiro da caridade. Ela não precisa de roupas, nem de ter seios bonitos, ela não precisa de nada disso. Ela tem as luzes sobre ela. Aí está a recompensa dela, para isso ela vive. As pessoas, mesmo as mais caridosas, mesmo as que parecem abdicar de tudo, elas também têm sua motivação. Esse é o problema do socialismo. O socialismo é uma idéia tão nobre que não pode dar certo.

Não é com cinismo nem com amargura que Millôr faz tais observações. É tão-somente uma reflexão.

– Eu mesmo, com tudo o que sei, toda a informação que tenho, sinto a impressão de que estou apenas na ponta do iceberg. Falo da corrupção. Porque todos nós, de alguma forma, fomos um pouco corruptos em dado momento. Lembro de uma época em que eu comprava uísque contrabandeado. Vinham entregar uísque contrabandeado na portada minha casa. E você? Você nunca deu vinte pratas para um guarda? Só que as coisas mudam. O que era comum antes, hoje pode ser um absurdo. Hoje, qualquer pessoa que entra na minha casa pergunta se pode fumar. Antes isso não acontecia de jeito nenhum. A pessoa chegava, tirava o cigarro e saía fumando. Tinha charme, fumar. Hoje, existe mais vigilância. Então, a corrupção aparece mais. Mas quanto da corrupção aparece? Só que tem o seguinte: meu medo maior não é a corrupção. Tenho mais medo da câmera oculta do que da corrupção. Porque a câmera oculta, para ela mostrar essa corrupção que vem mostrando, quanto ela gravou? Aparece só uma parte da intimidade que a câmera oculta devassou.
Se a câmera oculta fosse devassar a vida de Millôr, revelaria apenas um homem que trabalha todos os dias há 70 anos, que ama a vida que leva, nas ruas arborizadas de Ipanema, perto dos botequins, dos amigos e da praia.

– Aqui do meu apartamento eu vejo o mar. Vi as meninas do vôlei de praia. Aqueles corpos perfeitos. Graças a Deus, acabaram com aquela história de tanga. Muito melhor o shortinho justo, que mostra o que tem de ser mostrado e esconde o que tem de ser escondido. A nudez quase sempre é feia. Mas nós chegamos a um ponto ideal de exposição do corpo humano. Assim é que tem que ser. As pessoas têm de ser livres para fazerem o que quiserem. Olhe aquelas mulheres no Oriente Médio, aquelas mulheres que são obrigadas a usar burca. Aquilo é uma idiotice! Aí vêm uns e dizem: “Ah, mas tem que respeitar a cultura diferente...” Cultura diferente o cacete! Aquilo é uma estupidez.
O sexo. As mulheres.

– Sou muito interessado em mulher. Gosto das mulheres. Se esse interesse se transformar em sexo, tanto melhor. Tenho minhas amigas, elas vêm aqui em casa. Me sinto bem, relacionando-me com as mulheres.
Muitas mulheres houve na vida de Millôr, decerto. A ponto de ele confessar que, a respeito delas, não pode fazer confissões.

– Se contasse sobre minha relação com o mundo feminino isso ia ferir muita gente. Por isso não posso fazer uma biografia. Além do mais, só me responsabilizo pelo que digo até o momento de ter dito. Depois, posso mudar de idéia. Essa história de o que eu disse está dito não funciona comigo. Então, quando as pessoas me perguntam se não vou fazer uma autobiografia, respondo que, se fizesse minhas memórias, elas seriam falsas. Tem mais: o passado, a maior parte do passado é ridícula. Olhe as fotografias. A gente é ridículo nas fotografias do passado. O presente é melhor. As coisas são melhores agora. Quer ver? O boquete é uma invenção mais ou menos recente. E, olhe, todos gostam de boquete. Nós gostamos, elas gostam.

No Pan, Millôr viu o vôlei de praia e os shortinhos das jogadoras

foto: GEORGIOS KEFALAS, AP, BD – 25/7/2007


Confira a matéria completa no site do Millôr Fernandes, acessando:

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