(Lenda hindu)
Kandata, o facínora, tendo expirado sem mostras de arrependimento, foi pela imutável Justiça, atirado à região sombria dos eternos suplícios (1).
Durante muitos séculos suportou indiferente os tormentos do Inferno. Um dia, porém, o seu coração empedernido foi tocado por um tênue raio de luz de arrependimento. Ajoelhou-se e implorou, em prece fervorosa, a proteção e misericórdia do Senhor da Compaixão (2).
No mesmo instante, surgiu-lhe a figura radiosa de um Anjo, que lhe disse:
— O Senhor da Compaixão ouviu a prece humilde que acabas de proferir. E aqui estou para salvar-te dos castigos tenebrosos do Inferno. Ó Kandata! no decorrer das tuas vidas anteriores, hoúve dia que tivesses assistido a uma boa ação tua, por mais pequena que fôsse? Ela te ajudaria, agora, livrando-te dos tormentos que, sem tréguas, te afligirão. Mas nunca esperes ver cessados os sofrimentos atuais, conseqüência do teu passado, se conservares ainda sentimentos de egoismo e se tua alma guardar ainda a impureza da vaidade, da luxúria e da inveja. Dize-me, ó Kandata! se queres sair daqui, qual foi, acaso, o ato de bondade que em vida praticaste?
— Pelo Deus de Misericórdia! — exclamou Kandata, cheio de profunda humildade e tristeza — jamais pratiquei em minha vida passada qualquer ato digno ou louvável. A minha existência foi um rosário interminável de crimes e infâmias de tôda espécie!
— Kandata! continuou o Anjo. — Procura rememorar miúdamente tôdas as ações do teu negro passado! Basta um ato verdadeiramente bom de tua parte, um só para que obtenhas o perdão de Deus! Alguma vez socorreste com a esmola o desprotegido da sorte?
— Nunca! murmurou Kandata, com voz sucumbida.
— Algum dia — prosseguiu o Anjo — tiveste uma palavra de consôlo ou de bondade para os aflitos e desesperados? — Nunca!
— Não te moveram, uma só vez, à piedade, os enfermos, nem dispensaste qualquer proteção aos fracos e infelizes? — Nunca! — soluçava Kandata, com o desespêro dos arrependidos.
— E para com os animais, nossos irmãos inferiores? — insistiu ainda o Anjo. — Trataste com crueza, impiedosamente, todos os sêres fracos do mundo?
— Deus seja louvado! — exclamou Kandata.
— Lembro-me de que, certa vez, ao atravessar um bosque, vi uma pequenina aranha que procurava esconder-se sob a relva. — “Não pisarei esta pobre aranha — pensei — porque e fraca e inofensiva”. Desviei o passo, a fim de poupar a vida ao mísero e tímido animalzinho. Teria sido esta uma ação agradável aos olhos do Criador? — Feliz que és, Kandata — respondeu o Anjo.
— Êsse pequeno ato de bondade que acabas de recordar é, sem dúvida, suficiente para salvar-te do Inferno; e é a própria aranha do bosque que, em breve, te proporcionará — pela vontade divina — o meio único de salvação. Da altura infinita do Céu. a aranhazinha vai lançar-te um fio; por êle poderás subir até ao seio do Onipotente! E, isto dizendo, o Anjo desapareceu.
Quase no mesmo instante viu Kandata, com grande assombro, que um fio de aranha descia das alturas divinas até ao fundo do abismo negro que o torturava. Aquêle fio, de enganadora fraqueza representava para ele a salvação, a tão sonhada Ventura! Estaria, para sempre, livre dos suplícios indizíveis do Inferno!
Sem hesitar, Kandata agarrou-se a êle e começou a subir. Sentiu desde logo que o fio — pela vontade do Onipotente — era forte e lhe sustentava perfeitamente o peso do corpo, que balouçava no espaço.
De repente, porém, em meio da escalada, lembrou-se o bandido de olhar para baixo e notou que os seus companheiros de infortúnio procuravam também, à porfia, salvar-se da região dos tormentos, subindo pelo mesmo fio.
Com certeza não poderá tão delgado fiozinho suportar o pêso dessa gente tôda — pensou Kandata apavorado.
E, instigado pelo terrível egoísmo, desejando apenas a própria liberdade — sem lhe importar a alheia desgraça — gritou para os infelizes que já se agarravam, penca infernal, ao fio salvador:
— Larguem, miseráveis! Larguem, que êste fio é só meu!
No mesmo instante partia-se o fio da aranha e Kandata era para sempre restituído às profundezas em que tanto tempo sofrera tão duros castigos!
O fio salvador, forte bastante para levar ao Céu milhares de criaturas arrependidas de seus crimes, rompera-se ao sofrer o peso do egoísmo que a maldade insinuara num coração!
(1) A região dos eternos suplícios – o Inferno.
(2) Senhor da Compaixão – Deus.
NOTA: Este Conto é de autoria de MALBA TAHAN, em LENDAS do DESERTO – Editora CONQUISTA
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