terça-feira, 24 de junho de 2008

Conto

De como e porque Adamastor aprendeu o verdadeiro significado da Maternidade


O Problema


Na última curva da estrada, já perto de sua nova e longínqua morada, Adamastor Bueno Dias parou e olhou para o céu. Era tarde da noite. Estava cansado e confuso. Precisava parar o carro, respirar fundo e pensar. Apenas... pensar.
O corre-corre diário, as incertezas financeiras, as responsabilidades com os seus, embaralhavam-lhe o pensamento. Estava triste, pois há poucos dias tinha se separado da esposa. Sentia que não tinha mais paixão de ambos os lados. Sabia que o fogo da carne apagara-se há muito, embora ainda tivesse-lhe infinito amor, daqueles que temos pelos parentes próximos, não pelas belas, tentadoras e intangíveis mulheres. Lamentava não poder mais manter unida e conviver com a família. Mas a separação fora uma decisão bastante honesta e decidida da esposa e tinha que ser acatada com respeito, pois aquela era uma pessoa de forte personalidade. E, no final das contas, coincidia o desenrolar dos acontecimentos com os desejos íntimos do próprio Adamastor que, sem tanta coragem quanto a da esposa, estava há muito a protelar uma decisão final. Não a tomara, justamente porque sempre se obrigou a acreditar que um casamento não deveria padecer ante as dificuldades momentâneas do convívio diário. Mas a esposa era ainda muito jovem e parecia estar realmente infeliz junto a ele. Como era mulher nada acomodada, tomou a frente e se decidiu pelo casal. Tinha seus próprios sonhos e, com espírito sempre independente de artista, não estava afeita a abster-se da própria liberdade. Era para Adamastor importante, portanto, não obliterar àquela maravilhosa mulher a possibilidade de ser feliz.
Sua maior preocupação, no entanto, era com a linda filha de dois anos, sua razão de vida, materialização sublime do amor que compartilhara com a ex-mulher. A convivência com a pequenina foi a maior felicidade que a Fortuna lhe trouxera, sendo um verdadeiro calvário abster-se de seu convívio íntimo. Precisava dela, de seu jeitinho cativante e tranqüilizador, seu sorriso ingênuo e matreiro, seu carinho e amor, como as plantas necessitam do Sol, os peixes da água, os poetas da saudade e os pecadores de Deus.

Mas, mesmo assim, atribulado pelas questões difíceis da vida diária e pelos infortúnios familiares, insistia no que acreditava ser as grandes causas. Estas, talvez, fossem mesmo a razão primeira de todos os problemas. Adamastor pensava em demasia. Acreditava-se filósofo. Perseverava inexplicavelmente na meditação sobre as coisas do mudo, buscava verdades inexistentes, questionava o existente, sonhava acordado e vivia sem dormir. Um impulso incontrolável do fundo d´alma o impelia a continuar sonhando com coisas inúteis para a vida real, fazendo-o imaginar-se uma espécie caricata do caricato-mor, Don Quixote.
Diante da ridícula e absurda condição em que se encontrava, pensando nos problemas do Brasil, ao mesmo tempo em que estava perdendo a convivência diária de sua filha amada, Adamastor sentia-se como aquela deprimente e curiosa estirpe de nacionalistas sem Nação, de generais sem exércitos, de idealistas sem idéias, ou mesmo daqueles pecadores que, tragicamente, sequer têm desejo ou coragem para pecar.
Era este o Adamastor, o vaidoso de sempre. Teimava criar preocupações patrióticas, em arroubos românticos patéticos, mas não soube atentar-se para o alicerce básico de qualquer Pátria: a própria família. E isto estava custando-lhe muito caro. O álcool parecia um companheiro que não tinha mais o que dizer, que não surtia mais efeito no enfrentamento diário das contradições da vida e do peso do mundo. Assim, Adamastor sentia-se impelido a enfrentar a vida com novas armas...ou pelo menos acreditava que isso fosse possível. Na verdade, precisava de um acerto de contas consigo mesmo, pois sabia que acabara naqueles dias, efetivamente, a longa e dolorosa transição da adolescência para a vida adulta.
Naquela noite quente e escura, parado à beira da estrada tortuosa, tudo veio à tona. Queria pensar sobre o quanto lhe era importante manter a serenidade diante das agruras da vida. As mudanças no seu dia-a-dia, eram imperiosas, pois a separação familiar mostrou a definitiva constatação do fracasso de seu modo de ser, principalmente quanto a sua índole paquidermicamente fechada, exageradamente compulsiva, delirantemente idealista. E a Roda da Vida, atropelando-o sem lhe dar a menor chance.


A Revelação

Como que de repente, parado alí, totalmente só em meio à escuridão, mirando as sombras e ouvindo o balbucio misterioso da escuridão, Adamastor teve a impressão incômoda de que alguém o observava. Fez-se um silêncio estranho. Sentiu uma sombra tétrica e gelada passando-lhe rapidamente no canto extremo do olho direito, acariciando-o bem rente ao ouvido como um breve, mas definitivo sussurro. O jovem se virou de imediato, assustado, mas não havia ninguém. Um arrepio contencioso apropriou-se de seu corpo. Minutos se passaram e, de repente, a sombra de um vulto revelou-se enfim, sobre uma pedra na margem esquerda da estrada empoeirada. Era um fenômeno inesperado e ilógico demais para que sua mente pudesse ter tempo para provocar qualquer reação do corpo. Adamastor tremeu de pavor. Não conseguia se conter. Transpirando, não tinha reação, como acontece nos sonhos ruins da infância. Sem palavras, sem movimento, sem qualquer sinal mais explícito que pudesse fazer funcionar os sentidos humanos, a sombra parecia falar, fazia-se entender numa clareza impressionante. Apresentou-se, finalmente, como o Anjo da Morte, o mensageiro da dor, da saudade e da desolação.

A Reação e o Desafio

O coração tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraça. O nosso Adamastor, ao avistar o Anjo Inexorável, este Caronte sistemático das almas libertas da matéria, lembrou-se logo da ex-esposa e da filhinha querida. Num súbito inexplicável de coragem, dirigiu-se ao Mensageiro do Destino, sem hesitar.

— “Ó gênio infernal e desapiedado!” — falou com determinação. — “Que procuras aqui, quase a sombra de minha nova casa? Bem sei que a tua presença vale por uma sentença de morte. Veio finalmente buscar-me? Estou preparado! Leva-me, maldito!”, declarou com aquela fúria insana de quem não sabe efetivamente do que está falando e que procura esconder o medo que verdadeiramente sente.

Respondeu o Anjo da Morte, com a paciência e a serenidade que se espera de um enviado do Eterno:

— “A tua inquietação é legítima, meu amigo. Mas tranqüilize-se. Não é a ti que procuro. Vim a este recanto buscar a tua esposa. Achava que ela estaria contigo, pois as esposas devem sempre estar juntas aos maridos. Deveria ser em teu endereço que poderia achá-la. Mas vejo que me enganei. Terei de procurá-la na tua antiga residência. Estou certo?.”

Diante do olhar atônito e da sensação de impotência de Adamastor, a Criatura concluiu:

— “Chegou, pela determinação do Destino, o termo de sua existência neste mundo. Ela terá que morrer, pois já cumpriu a missão e poderá descansar”.
O vaticínio do inoportuno visitante, com demasiado realismo, soou ao desditoso Adamastor quase como uma crueldade satânica, não lhe restando outra alternativa a não ser o desespero.

— “Piedade, Anjo Macabro! Piedade! Não faça isso, por favor!” — implorou Adamastor, mesmo que sabedor da dificuldade em se evitar a Roda do Destino. E insistiu, prostrando-se:

— “Ela é tão jovem, tão meiga e tão prendada! Pelo amor de Deus, deixe viver a mãe amabilíssima de minha filha queria. Ela tem ainda que criá-la”.

O Anjo da Morte meditou em silêncio atormentador durante alguns instantes e depois, sem vacilar, disse friamente:

— “Muito fácil será prolongar a vida de tua esposa, principalmente por ser ela uma artista, ofício da alma que sempre está próximo do Criador”, palavras que deram alguma esperança ao homem desesperado. E continuou o Umbral da Morte/Vida:

— “Sei que tens direito a uma vida longa e quase tranqüila pela frente. Está escrito! Restam-te, ainda, quarenta e seis anos de vida. Poderá ceder a tua esposa a metade do tempo que te cabe, no futuro, para viver. Ela ficará, portanto, com direito a metade de tua vida e viverá em tua companhia, vinte e três anos. Findo esse prazo, morrerão ambos no mesmo instante! Aceitas essa proposta?”, desafiou o Anjo Decisivo.

As palavras do Mensageiro de Deus fizeram hesitar o jovem Adamastor. Quem, nestas condições, por mais decidido em salvar a companheira, não ficaria indeciso em sacrificar metade da própria vida em benefício de outra, mesmo que fosse a da mãe de sua filha queria? Era uma decisão difícil.

— “A tua sugestão, Ferramenta do Destino cruel, implica uma questão de infinita gravidade para a minha vida. Não poderei tomar uma decisão nesse sentido, sem, antes, consultar os meus três grandes conselheiros. Poderás esperar que eu ouça e reflita sobre a opinião daqueles que sempre me auxiliam e orientam em horas difíceis?”, indagou com firmeza o inconsolável Adamastor.

— “Farei como pedes, meu amigo”. — declarou o Representante das Moiras fatais. E avisou: — “Até o findar da noite de amanhã, aguardarei a tua palavra final. Deverás voltar, com a tua resposta, sem mais demora. Deverás estar aqui antes do amanhecer”. E tendo dito estas palavras, a sombra se foi. Um silêncio mais sepulcral se fez presente e os pensamentos atormentavam ainda mais a mente do desgraçado e indeciso jovem.

A Busca da Solução



Partiu Adamastor em busca dos amigos, cujos sábios conselhos pretendia ouvir. Deveria ele sacrificar a metade da sua vida para salvar das garras da Morte a mãe de sua filha, pessoa que ainda amava como a uma irmã?
O Primeiro conselheiro de Adamastor era um artista pernambucano consagrado, uma alma verdadeiramente sensível e de assinalados méritos, como não poderia deixar de ser, pois era um verdadeiro demiurgo. Chamava-se Sebastião de Castro Valença, vulgo “Tião Moleiro”, pois era exímio escultor especializado em trabalhos em barro. Mas sabia esculpir com admirável perfeição, também, na pedra ou na madeira; e suas obras eram mais apreciadas do que “os corpos negros das beldades da Bahia”, como dizia com orgulho, num sotaque carregado, o artista pernambucano.

Eis como Tião Moleiro, o escultor, falou a Adamastor:

— “A vida, meu caro, só tem sentido quando a sua finalidade é traduzida por um grande e incomparável amor. Não falo de amor carnal. Este não é amor, mas egoísmo e imediatismo. E o amor que dispensa sacrifícios e renúncias não é amor; é a expressão grotesca de um capricho vulgar. Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu coração medindo-a pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada, mãe de sua única e maravilhosa filha, deve o homem sacrificar, não apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que importa, Adamastor, uma existência longa, torturada pela dor de uma incurável saudade ou pela culpa pelo que não se fez? Seria uma vida longa e tormentosa demais para encarar os olhinhos de tua querida filha, carente da presença da mãe. Portanto, preferível, mil vezes, que vivas a metade de tua vida à sombra feliz do amor delicado de tua mulher - que há de voltar para ti - e da felicidade impagável de tua filha querida. No teu lugar eu não teria hesitado um só instante em aceitar a proposta do terrível Anjo da Morte”.

Assim falou o eminente artista sem vacilar. Colocava a questão com precisão, o que deixou Adamastor com a convicção que o certo era mesmo abreviar a própria existência em beneficio da ex-esposa e do amor a sua filha. Mas, ao mesmo tempo, temia pela brevidade da própria vida, o que era perfeitamente normal.
O segundo conselheiro procurado por Adamastor foi justamente o seu irmão mais velho. Chamava-se Samuel e era um hábil comerciante, um homem de negócios muito realista e inteligente. Ao ouvir a consulta bizarra do irmão mais novo, Samuel não se conteve:

— “É loucura, Adamastor! Não seja imbecil! Onde já se viu um moço, inteligente, culto e cheio de saúde, sacrificar a metade da vida por causa de uma mulher? Encontrarás, pelo mundo, milhões e milhões de mulheres lindas e mais ou menos fiéis, muitas das quais muito melhores do que a tua ex-esposa que, aliás!, não te merece. Aqui mesmo na cidade, poderás topar, em qualquer lugar, com centenas de moças maravilhosas e que poderão ser mães exemplares para tua querida filha. Desgraçada a idéia de quereres adiar o termo da existência de uma mulher com o sacrifício de vinte e tantos anos de tua vida! Não se pode ir contra o Destino. Sempre que os homens tentaram tal absurdo, sofreram terrivelmente as conseqüências. A Natureza sabe o que faz. É isto, tenhas certeza meu irmão, uma tentação do Demônio! Cuidado! E tem outra coisa: e quem poderá prever o futuro? Ela já te deixou uma vez, porque não fará novamente? Aliás, vocês estão separados agora e, pelo que consta, ela não tem intenção de voltar a viver contigo. Amanhã, essa mulher, arrebatada por uma nova paixão – o que seria normal! - e esquecida do sacrifício que por ela fizeste, abandonar-te-á e irá viver, nos braços do outro, a vida que é a tua própria vida. Que farás, então, vendo-a ceder a um odiento rival os dias roubados ao rosário de tua existência? Por outro lado, estás equivocado quanto à felicidade de tua filha, pois, depois dos vinte e três anos, a coitadinha perderá a convivência não só da mãe, mas também a tua. Ficará órfã de pai e mãe. E isto sem qualquer outra pessoa mais amada por ela que possa consolá-la. Do contrário, perdendo a mãe agora, pela ordem natural do Destino, teria que se resignar com a fatalidade da vida, mas com o seu apoio e companhia ainda por quarenta e seis anos. Já pensastes na questão por este ângulo, meu amado irmão? Penso que não deverias ter hesitado ante a proposta descabida do nefasto Anjo da Morte. Eu a teria repelido no mesmo instante.”
O realismo contundente do irmão deixou Adamastor ainda mais confuso. A divergência entre os dois conselheiros mais fez crescer a indecisão e a incerteza no coração do infeliz rapaz..

— “Vou ouvir” — pensou o jovem — “a opinião do prudente Baltasar. Só ele, sempre afeito ao reto e virtuoso equilíbrio, poderá indicar-me o caminho correto a seguir”.

Baltasar era primo em primeiro grau de Adamastor. Era um importante advogado e funcionário público, com a fama de ser grande estudioso das leis e dos ritos. Gabava-se sempre de sua formação jurídica erudita e acreditava ser um salomão em questões controversas e difíceis. Adamastor sempre o viu não apenas como um primo, mas como um verdadeiro irmão. Foram criados juntos por muitos anos e sempre se admiraram. Informado do celeuma e dos antagônicos comentários dos conselheiros anteriores, assim falou Baltasar, quase lacônico, ao já desesperado Adamastor:

— “Se amas realmente esta mulher, se tens respeito e admiração por ela e queres manter a felicidade de tua filha querida, acho que deves ceder, a essa jovem mãe, a metade do tempo que te resta para viver. Convém, entretanto, impor uma condição. A parcela de vida, depois de cedida a ela, poderá ser retomada por ti, em qualquer momento. Terás, assim, a tua tranqüilidade garantida no caso de uma infidelidade de tua ex-esposa, que naturalmente terá de voltar para ti. Se ela, por qualquer motivo, não se mostrar digna de teu sacrifício, perderá o direito ao resto da vida que lhe caberia viver as tuas custas. Fora dessa condicional, qualquer outra solução para o caso não passaria de irremediável loucura! Portanto, inconcebível! Só assim, meu caro primo, poderá haver equidade entre as partes contratantes”.

E concluiu o seu conselho com estas palavras verdadeiramente filosóficas: — “Fizeste bem em hesitar. A Hesitação é irmã da Prudência. Só os loucos e temerários é que nunca hesitam”.

Achando bastante razoável a sugestão conciliadora do douto Baltasar e aliviado por ter chegado a uma decisão, Adamastor foi sem perda de tempo à procura do Enviado da Morte. No lugar e no horário marcados, encontrou-se novamente com aquela estranha e macabra sombra. O Terrível Ceifador, informado das condições trazidas por Adamastor, acabou aceitando o acordo, dizendo sem vacilar:

— “Está bem, senhor Adamastor. Aceito a tua proposta. A tua bondosa esposa viverá os próximos vinte e três anos que pertenceriam ao senhor. Esta parcela de vida, porém, se foi o que entendi, não foi dada pelo senhor, mas ´emprestada`. Não é isto mesmo?”.

Confirmando as palavras do Anjo da Morte e satisfeito com o bom termo da questão, Adamastor ficou muito feliz. Agradeceu a compreensão da Entidade Tanática e foi-se embora viver bem o tempo que lhe restava junto à esposa e à filhota.

A Revelação

Passaram-se alguns anos e Adamastor acabou se unindo novamente a sua família. Pretendia recompor seu casamento em novas e mais sólidas bases. Esquecera-se dos problemas ontológicos, das metafísicas e suas abstrações complicadas e inúteis. Fez vista grossa aos descaminhos e paixões da política, despreocupou-se com o futuro da Pátria, absteve-se das grandes questões. Acreditava, a partir de então, que o maravilhoso estava nas coisas simples e concretas da vida. Pensava que poderia reconquistar o amor da esposa e dar tranqüilidade e carinho sempre maiores a sua filha querida. Esta, aliás, se chamava justamente Maria Tilonglia, que derivava de Ti-Long-Li, que em dialeto tibetano significava “minha vida querida”. Este nome fôra uma escolha da mãe, pessoa afeita às questões espirituais e afinada com as meditações, a yoga e outras idiossincrasias das filosofias orientais. Finalmente, tudo parecia caminhar bem para Adamastor e sua família. Eles passaram a ser citados por familiares e amigos como o casal mais harmonioso e feliz da cidade.
Um dia, no entanto, Adamastor foi obrigado a fazer uma longa e árdua viagem a serviço. Tinha que passar um mês fora, em região distante, no extremo Norte do País. A contragosto, deixou a esposa e a meiga “Minha Vida Querida” - que já contava aproximadamente cinco anos - com todas as condições e segurança para se manterem bem até a sua chegada.
Tempos depois, quando regressou, ansioso em ver a filha e a esposa, Adamastor teve uma susto ao encontrar os seus três conselheiros prediletos na porta de sua casa. Achou aquilo estranho, mas bateu de ombros e foi ao encontro dos companheiros para saudá-los.
Depois dos devidos cumprimentos, percebeu que algo não estava bem. Sentiu um certo ar de ansiedade e temeridade nos olhos de todos eles. Preocupado, indagou ansioso:

— “Onde estão a minha mulher e “Minha Vida Querida”? Por que não estão aqui a me esperar? Estão doentes? Aconteceu algo? Respondam-me, por favor!”

Diante do nervosismo de Adamastor, o pragmático Baltasar disse:
— “Enche de ânimo e de coragem o teu coração, meu velho amigo! Uma grande desgraça, há três dias, aconteceu. Precisará ser forte!”, advertiu o primo.

— “Desgraça!?” — indagou, aflito, Adamastor. — “É horrível esta angústia! Vamos logo, meus amigos, por favor, digam-me a verdade! Onde estão ´Minha Vida Querida` e sua mãe?”

Tentando acalmá-lo, mas sem saber como dar a terrível notícia, responderam quase em uníssono:

— “Tua filha está bem, mas tua esposa faleceu há três dias.”

Inconsolável e furioso, Adamastor bradou: — “Não é possível! Não podia morrer! Isto é impossível! Eu sacrifiquei por ela metade de minha vida! Vocês estão lembrados do pacto firmado com o Anjo da Morte!? Não é possível ter acontecido! Tenho um trato, não se lembram?”, indagou quase desmoronando de desespero.
Dominado pela dor e revoltado pelo infortúnio de haver perdido a sua esposa querida, entrou a blasfemar furioso, como um possesso, contra Deus, contra o Destino, contra tudo que a religião representava. Erguia os braços para o céu com os punhos fechados com força e ódio. Irado, rolava indômito pelo chão, debatia-se violentamente contra tudo que encontrava pela frente. E não tinha ninguém que pudesse acalmá-lo. Acabou machucando os próprios companheiros, flagelava o próprio corpo jogando-se contra a parede e não parava de insultar o nome do Criador. Era o próprio desespero! Era a encarnação da angústia humana.
Os amigos acharam por bem se afastar, cautelosos, até que Adamastor pudesse se acalmar. Era preciso deixar o infeliz dar plena vazão a inominável angústia que lhe esmagava o coração.
No momento em que se recobrava, momentaneamente, do cansaço da fúria, agachado e ofegante num canto do muro da casa, Adamastor ergueu os olhos e viu surgir diante de si aquela tenebrosa sombra que, logo, se identificou como a do Anjo da Morte.

— “Canalha!”, esbravejou num tom de incontido rancor, encarando a sombria criatura. — “Faltaste com a tua palavra. Que fizeste com minha esposa? Porque a levou antes do combinado? Eu não tinha lhe cedido parte de minha própria vida? Responda, maldito!”

— “Escuta, Adamastor”, respondeu o Anjo, com aquela serenidade que lhe era peculiar e que só aumentava a ira daquele que o inquirira. — “Preciso dizer-te a verdade, para que não continues a blasfemar desse modo contra Deus. A tua esposa deveria viver vinte e três anos ainda, como fôra combinado. Um dia, porém, a tua filha querida adoeceu gravemente. A pequenina iria morrer com certeza. Estava escrito no Livro Sagrado dos Destinos. Quando fui buscá-la, como era meu dever, fui interrompido pela mãe. Sabendo que ia levá-la, que fez a desesperada mulher? Pediu em preces, diretamente a Deus, com muita fé e amor, com fervor d`alma, que a sua própria vida fosse dada em troca da amada filha enferma! Salvou-se, assim, a tua querida Tilonglia, mas tua esposa morreu! Foi isso que aconteceu, homem desesperado! E nada mais...”..

E, diante a estupefação de Adamastor, o Anjo concluiu com severidade:

— “E enquanto tu, como esposo, hesitaste em ceder a metade de tua vida à mãe de tua filha, esta, extremosa, abnegada, não pensou duas vezes em dar, pela filhinha, a vida inteira! É esta alma materna, protetora e despojada, decidida e amorosa, que explica a alma feminina, sua essência criadora e protetora, sua força para criar os filhos de Deus! Aprenda, portanto, desesperado Adamastor, que é por isso que só as mães são felizes, porque conhecem a concepção da vida, vivem e sacrificam-se por ela. Por esta razão é que, por direito divino inviolável, é imperativo e natural que seja sempre dada a elas a prioridade no cuidado e na criação de sua prole. Se aos homens fosse concedida esta qualidade materna superior, o mundo provavelmente já seria melhor. Mas não é o caso. Fique em paz, Adamastor. Vá cuidar de sua “Vida Querida”, eduque-a com amor, reze pela alma da falecida e fique com Deus!”.
Adamastor, resignado, entregue aos desígnios de Deus, ajoelhou-se, abaixou a cabeça, abraçou o próprio corpo com firmeza, encolhendo-se, e chorou em silêncio profundo. Sentiu como nunca saudades da esposa. Percebeu como era maravilhosa a mulher amada. Da forma mais difícil aprendeu ao mesmo tempo o significado verdadeiro da maternidade e, também, o abismo quimérico entre o Amor e a Paixão.

* Conto inspirado em antiga e importante lenda hindu, somente conhecida no Ocidente quando trazida pelos árabes nos séculos IX/X e popularizada no Brasil pelo magnífico e insuperável Malba Tahan.

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