domingo, 20 de julho de 2008

Luis Fernando Veríssimo


O Lixo

Encontraram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.

— Bom Dia...
— Bom dia.
— A senhora é do 610.
— E o senhor do 612.
— É.
— Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
— Pois é...
— Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
— O meu o quê?
— Seu lixo.
— Ah...
— Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
— Na verdade sou só eu.
— Mmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata.
— É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não cozinhar...
— Entendo.
— A senhora também...
— Me chame de você.
— Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
— É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às vezes sobra...
— A senhora... Você não tem família?
— Tenho, mas não aqui.
— No Espírito Santo,
— Como é que você sabe?
— Veja uns envelopes em seu lixo. Do Espírito Santo.
— É. Mamãe escreve todas as semanas.
— Ela é professora?
— Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
— Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
— O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
— Pois é...
— No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
— É.
— Más notícias?
— Meu pai. Morreu.
— Sinto muito.
— Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
— Foi por isso que você recomeçou a fumar?
— Como é que você sabe?
— De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
— É verdade. Mas consegui parar outra vez.
— Eu, graças a Deus, nunca fumei.
— Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
— Tranqüiliantes. Foi uma fase. Já passou.
— Você brigou com o namorado, certo?
— Isso você também descobriu no lixo?
— Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
— É, chorei bastante, mas já passou.
— Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
— É que eu estou com um pouco de coriza.
— Ah.
— Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
— É. Sim. Bem. Eu fico em casa. Não saio muito. Sabe como é.
— Namorada?
— Não.
— Mas há uns dias tinha fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
— Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
— Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
— Você já está analisando meu lixo!
— Não posso negar que que o seu lixo me interessou.
— Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
— Não! Você viu meus poemas?
— Vi e gostei muito.
— Mas são muito ruins!
— Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estão dobrados.
— Se eu soubesse que você ia ler...
— Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando, Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
— Acho que não. Lixo é domínio público.
— Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
— Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
— Ontem, no seu lixo...
— O quê?
— Me enganei, ou eram cascas de camarão?
— Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
— Eu adoro camarão.
— Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
— Jantar juntos?
— É.
— Não quero dar trabalho.
— Trabalho nenhum.
— Vai sujar a sua cozinha.
— Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
— No seu lixo ou no meu?

Luis Fernando Veríssirno (1936) nasceu em Porto Alegre (AS). Foi publicitário, mas logo se tornou um profissional do humor, em livros e colaborações diversas: para jornais, revistas e emissoras de televisão. Excelente cronista, contista notável é um extraordinário criador de tipos (o analista de Baqé, a velhinha de Táuhaté). Aficcionado de jazz, toca saxofone.
Principais obras: O popular; A grande mulher nua; Amor brasileiro; O rei do rock; Ed Mort e outras histórias; Sexo na cabeça; O analista do Bagé; Outras do analista de Bagé; A mesa voadora; A velhinha de Taubaté e A mulher do Silva, crônicas e contos.

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