quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Said Barbosa Dib

Diploma para jornalistas: Grilhão versus Peitão

Recurso Extraordinário RE/511961, que está em pauta no STF, questiona a exigência do diploma de jornalismo como condição necessária para se exercer a profissão. Se houver a aprovação do recurso, os ministros mostrarão que o direito à liberdade de expressão e à difusão de informações de interesse público não pode ser monopólio de uma casta da sociedade. Teoricamente, como temem os corporativos, qualquer cidadão brasileiro, de qualquer área, poderá se especializar e seguir a carreira de jornalista.

A reação “termidoriana” dos corparativistas

Com o lema “Em Defesa do Jornalismo, da Sociedade e da Democracia no Brasil”, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) organizou ato público para hoje, em frente ao Supremo. ''A sociedade brasileira está ameaçada numa de suas mais expressivas conquistas: o direito à informação independente e plural, condição indispensável para a verdadeira democracia''. A afirmação faz parte do manifesto à Nação que a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) e mais 31 sindicatos filiados divulgaram em defesa do monopólio. É claro que o manifesto não explica como o direito à informação pode ser “independente e plural” numa estrutura em que os jornalistas são meros empregados dos grandes conglomerados da comunicação, controlados pelo pensamento único determinado pelo grande capital estrangeiro. No manifesto, há ainda a desinformação e o terrorismo: “Se os ministros aprovarem o recurso, qualquer pessoa, em tese, mesmo as que têm apenas o ensino fundamental ou até analfabetos, poderão requerer o direito de se tornarem jornalistas” (sic). O manifesto fala também que os sindicatos estão empenhados em acolher manifestações de apoio à causa do diploma e “do profissional jornalista formado junto às entidades da sociedade civil organizada”. Confesso que não entendi bem o último comentário do panfleto. Será que um jornalista formado numa faculdade privada, como o CEUB (que vive do lucro), ou numa universidade pública, como a UnB, estão enquadrados nisto? Será que não são considerados? Ou será que tem que ser formado por uma ONG, um sindicato ou por uma Igreja? Por enquanto, a resposta fica para depois, pois o outro lado que aparece na mídia, os que querem transformar a nobre profissão num imenso, democrático e irrestrito blog aberto a todos os seres viventes que sabem escrever, também estão em campanha.

“Diploma do Peitão”: a ridicularização proposital do debate

Curiosamente, nos últimos dias, a figura pública que mais se destacou na liderança dos que querem o fim do corporativismo foi a bela Karina Bacchi, modelo apresentadora da Rede Record, que escreveu texto inflamado em seu blog depois de ler uma notícia de jornal sobre ela. “Acho fora de série alguns comentários pra lá de maldosos que certas pessoas insistem em fazer sobre a vida alheia! Que prazer mais sem nexo! (falta de sexo, talvez!)”, disparou a saborosa loira sem dizer o nome do periódico em que viu a crítica. (LEIA O POST COMPLETO NO BLOGLOG). Segundo Karina, a nota dizia que a apresentadora tirou o “Diploma do Peitão”. “Até achei que tinham inventado alguma premiação divertida!. Santa ingenuidade a minha”, escreveu ela explicando que o autor da matéria ironizou o fato de Karina “não ter um diploma de jornalismo e mesmo assim fazer matérias internacionais para a Record”.
É claro que esta polarização entre os engajados corporativos e os libertalóides folclóricos não corresponde à verdade dos interesses em jogo, não esclarece os aspectos jurídicos e políticos em questão e, muito menos, permite a desmistificação debate. É claro que nenhum dos extremos tem razão, como geralmente acontece. Trata-se de pura guerra midiática. Aliás, a idéia de “polarização” faz parte justamente da estratégia dos defensores do corporativismo, que precisam estigmatizar, debochar e ridicularizar os causídicos do Recurso Extraordinário RE/511961. Não é por outro motivo que, nas vésperas da decisão do Supremo, “caia” do céu o caso do “Diploma do Peitão”, capitaneado por Karina Bacchi, mulher de mídia, mulher de propaganda, que tem todas as qualidades para garantir o sucesso da campanha que visa estereotipar, junto à opinião pública, os argumentos fortes dos que procuram, com seriedade, questionar as bases do corporativismo dos jornalistas profissionais. Afinal, a perigosa afinidade entre publicitários e jornalistas é justamente um das mais fortes argumentos contra o monopólio dos jornalistas no trato do noticiário, como veremos.

A desmistificação do debate

A verdade é: o que está em jogo não é apenas uma disputa corporativa, não é apenas a qualidade técnica dos jornais, não é apenas a questão da fidelidade ética dos profissionais, nem muito menos a preocupação com conceitos abstratos vinculados à democracia, como liberdade de expressão ou direito à informação. O que está em jogo é uma concepção política que, desde o final dos Anos 60, transformou a imprensa brasileira em verdadeiro aríete do capital transnacional contra a soberania da sociedade brasileira. Discussões técnicas superficiais, que destacam apenas o aspecto profissional da questão, sem levar em conta a totalidade de relações que o processo jornalístico implica, são formas de se desviar os verdadeiros problemas do papel da imprensa no Brasil contemporâneo. O argumento simplista dos corporativos de que, assim como médicos e engenheiros, os jornalistas precisariam de um curso superior é falácia tola. Profissionais de nível superior, que exigem formação altamente especializada, com exigências muito específicas, como medicina, direito e engenharia, têm razão em exigirem controle mais apurado sobre o desempenho de suas funções. Não é, por certo, o caso do jornalismo, profissão que trata, por definição, de temas gerais, como os problemas de todas as demais profissões e da sociedade como um todo. Portanto, necessariamente deve ser exercido por qualquer um, desde que demonstre aptidões para tal – aptidões que não dependem de diplomas, mas de vontade, dedicação e competência. Ou seja, é tão idiota exigir diploma para quem exerce o jornalismo como seria energúmena a exigência de uma licença do Estado para se escrever poesias, roteiros de filmes, prosas, romances ou letras de músicas.

Mito da neutralidade tecnicista norte-americana versus jornalismo de opinião


Na verdade, o que se quer com o Recurso Extraordinário no Supremo não é nada novo. Pelo contrário, trata-se de um resgate, pois a profissão de jornalista foi deturpada, com objetivos bem claros de manipulação, pela fase mais dura do regime militar (1968), quanto o processo de desnacionalização da imprensa no Brasil andava pare-passo com o processo de internacionalização de nossa economia. Era a aliança do regime de força com as transnacionais, com vistas, através da separação entre a sociedade e os formadores de opinião, ao controle da opinião pública. A transformação do jornalista em um mero profissional da informação, alienado da realidade, separado de outras áreas, um técnico anêmico, “despolitizado”, facilitava o controle. Era o mito do jornalismo norte-americano de “neutralidade da notícia” chegando às terras tupiniquins, justamente quando grupos poderosos da mídia dos EUA, como o TIME LIVE, aqui aportavam. Assim, a exclusividade determinada pela exigência do diploma passou a ser uma estratégia dos grandes grupos de mídia, assumida para a formação uma indústria de massa. Estabeleceu-se um período de transição para a regularização dos que já trabalhavam e, passado certo tempo, só formados em faculdades de Comunicação puderam ser contratados pelas empresas. Era a pulverização da totalidade existencial do jornalista-cidadão, que assumia suas posições e opiniões, em um ser fragmentado pela ideologia empresarial a serviços do mercado e, portanto, do lucro das empresas de contratantes. Era a transformação do ofício em mera mercadoria. Assim, foi decretada a morte da diversidade de formações e, portanto, de opiniões. O verdadeiro caldeirão intelectual de senso crítico e criatividade, que fermentava a produção jornalística das redações até o final da década de 60, foi amordaçado pelo mito da imparcialidade na descrição dos fatos. Médicos, engenheiros, matemáticos, físicos, juristas, professores, autodidatas sem diplomas (mas inteligentes), profissionais de diversas áreas, mas competentes e criativos, foram proibidos de contribuir com suas experiências para a sociedade. Neste cenário, gigantes do jornalismo brasileiro, como um Rui Barbosa, um Carlos Lacerda ou um Helio Fernandes, jamais teriam espaço. E não tiveram. E era justamente o que se pretendia. Assim, perdeu a sociedade. Perderam os leitores, ouvintes e telespectadores. Perderam a cidadania e o pensamento crítico. Perdeu o Brasil. Ganharam aqueles grandes grupos amestrados vinculados ao grande capital estrangeiro, com seus empregadinhos - repassadores frios de fatos deturpados e divulgadores de ideologias alienígenas-, formados pelo taylorismo das faculdades de comunicação. Não foi por outro motivo que foi justamente neste período que empresas apátridas, como o Grupo Abril e a Rede Globo, se tornaram potências.

O verdadeiro problema não é quem pode ou não ser jornalista, mas quem pagará para escrever...

Portanto, o debate atual é muito salutar. Há a chance não de se inovar, mas de se reparar um erro que foi premeditado pelas forças que sempre quiseram amordaçar os que nunca aceitaram a submissão do Brasil. Os argumentos corporativos dos atuais jornalistas não têm fundamentação nenhuma diante da realidade atual da imprensa, há muito subjugada pelo grande capital transnacional. Isto porque, a direção de empresas jornalísticas, graças a uma lei do tempo de João Goulart, ratificada pela atual Constituição (1988), cabe exclusivamente a brasileiros. Porém, hoje, os grandes conglomerados estrangeiros julgam desnecessário reformá-la nesse ponto, pois é fácil recrutar apátridas locais para as causas anti-nacionais. E as faculdades de jornalismo são, hoje, verdadeiras usinas de amestrados que, iludidos de que desempenharão uma jornalismo neutro, imparcial, acabam manipulados pelos donos das empresas jornalísticas, prejudicando a sociedade brasileira. Todos sabem que há muito as empresas alienígenas burlam tais exigências legais. Duas CPIs, uma em 1963, outra em 1966, investigaram a penetração do capital estrangeiro nos meios de comunicação. Nas conclusões da primeira, o então deputado João Dória (pai do almofadinha júnior conhecido hoje), então presidente da CPI e um patriota, afirmou: "Em 1960 os dispêndios em publicidade somavam US$ 110,8 milhões (o equivalente a mais de US$ 1 bilhão em valores atuais), 37% à televisão, 28% ao rádio e o restante a outros meios. A veiculação dessa publicidade está em agências, dominadas por apenas oito companhias estrangeiras. Reunidas na Associação Brasileira de Agências de Propaganda – Abrap. Controlam, ainda, a Agência Brasileira de Publicitários. Em 1959, os 11 principais anunciantes do país formaram a Associação Brasileira de Anunciantes – ABA, que incorporou mais 19. Dos 30, quase todos eram grupos estrangeiros. Grande número de revistas e jornais de posição nacionalista viu-se obrigado a suspender as edições por falta de publicidade, apesar de ter índices de vendagem mais altos do que órgãos brindados por frondosa publicidade. Além disso, organizaram-se no Brasil várias empresas jornalísticas subsidiárias de empresas americanas".
Estas palavras de João Dória são sobre dados de 1960. Imagina-se qual não é a realidade de hoje, com todo esse processo de abertura criminosa provocado pela globalização? O fechamento de jornais por questões econômicas, portanto, infelizmente, é a coroação de um processo perverso de controle e neutralização da nacionalidade brasileira pela mercantilização e alienação de tudo sob a égide do capital estrangeiro. Isso está inteiramente associado às tentativas constantes de se jogar o Brasil de joelhos perante um modelo econômico assassino e submisso. Modelo alimentado pelo marketing, pelo falso entretenimento, pela desinformação, pela concorrência desagregadora, pela subserviência de nossas elites tacanhas, pela macaquice do show-bussines americano; coisas trazidas pela mídia estadunidense desde JK, ampliadas pelos militares e, atualmente, transformadas em modelo de progresso pela "Idade das Trevas" da fase apátrida “FERULA”, FHC/Lula. E a complacência, claro!, dos “neutros” jornalistas produzidos em série nas usinas de mentes vazias das faculdades. Jornalistas que, mesmo sabendo de tudo isso, ainda têm a cara-de-pau de falar, em seu manifesto corporativo, de coisas como “Direito à informação independente e plural, condição indispensável para a verdadeira democracia''.

Contradição Insolúvel: o público e o privado

A manipulação privada e estrangeira de informações públicas, portanto, é o grande problema, principalmente num contexto de mercantilização de tudo. Esta é a grande questão a ser enfrentada e traz à tona a discussão acerca da própria longevidade e eficácia da nossa democracia. Assim como a saúde, as notícias não deveriam jamais ser vistas como uma simples mercadoria. Todos os jornais, dos mais sóbrios aos mais ousados ou sensacionalistas, preocupam-se quase que totalmente com a apresentação. Afinal, tudo, como reza o modelo globalizado, é visto como uma mercadoria. E a informação não seria diferente. Para aumentar a venda do “produto” informação, não apenas o conteúdo, mas também a embalagem tem que ser atraente.
É preciso considerar, contudo, que a empresa jornalística coloca no mercado um produto muito específico: a mercadoria política. Nesse tipo de negócio há dois aspectos a se levar em conta – o público e o privado. A esfera pública relaciona-se ao aspecto político; o privado, ao empresarial. E é aí que temos uma contradição insolúvel. Pois a informação e o acesso a ela são direitos públicos garantidos pela Constituição, mas o jornalismo é, geralmente, uma atividade privada, voltada, hoje, exclusivamente para o lucro. Como conciliar estas esferas excludentes num mesmo elemento?

Limites difusos

Os empresários-jornalistas atuam na esfera privada, orientados pela lógica do lucro. Como qualquer empresa capitalista, enfrentam os concorrentes com todas as armas de que dispõem: notícias, opiniões e atrativos diversos para atender a todos os gostos. No entanto, a imprensa é também, ou deveria ser, veiculadora de informações de utilidade pública, portanto, de direito público, e nesse papel norteia-se pelo princípio de publicidade, colocando-se como intermediária entre os cidadãos e o governo. O jornalista, neste cenário, não é agente ativo da produção jornalística. Não passa de “fator” de produção, como qualquer empregado de uma indústria de salsichas, por exemplo. A produção de informações, a edição e a divulgação do material produzido, não dependem dos profissionais contratados, mas dos donos dos jornais. Donos que não estão preocupados com a liberdade de expressão, com as opiniões ou com as verdades da sociedade, mas com o lucro. Falar, portanto, que o monopólio do diploma por um grupo de jornalistas seja condição essencial para a liberdade de expressão é piada de mau gosto.
Segundo a tradição liberal, no entanto, os governantes devem tornar públicos seus atos e tomar conhecimento dos anseios dos governados. A imprensa é o canal entre ambos. Nos Estados liberais, as constituições garantem a todos a liberdade de expressar sua opinião e de obter informações. A imprensa é o veículo apropriado para esses fins. Formalmente, todos são livres e iguais perante a lei, mas na prática uns são mais livres e iguais. Ocorre então que, neste mundo desigual a informação, direito de todos, transforma-se numa arma de poder manipulada pelos poderosos, num instrumento de defesa de interesses privados, difundindo mentiras e desvirtuando a função primeira da imprensa: a cidadania. Nessa verdadeira salada caliginosa, nessa confusão jurídica, onde se mesclam o público e o privado, os direitos dos cidadãos e suas opiniões não são dos cidadãos, nem tampouco dos jornalistas, mas dos donos de jornais, fazendo predominar as visões de mundo das elites abastadas. E, tragicamente, estas elites são ou estrangeiras ou submissas a elas. Como podem os empresários-jornalistas exercerem, de forma independente, o dever da crítica se estão ligados estruturalmente às pessoas e aos grupos que deveriam denunciar? Os compromissos que eles estabelecem na esfera privada não desaparecem quando atuam na esfera pública. A confusão entre o público e o privado define os limites do chamado quarto poder.

Conclusão: queremos mais Helio Fernandes da vida

A decisão do Supremo será importante. É claro que não queremos nem o corporativismo tutelado pelas transnacionais dos jornalistas, nem o “Diploma do Peitão” caótico da vida. Em ambos os casos, o grande problema é a confusão que há entre atividade jornalística e a mera publicidade. Confusão esta gerada pelo caráter mercadológico da lógica capitalista globalizada. A atividade dos jornais, numa sociedade que se pretende democrática e plural, é importante demais para ser tratada como se fosse salsicha, ou outra mercadoria qualquer. A participação de profissionais de outras áreas nos jornais trará, sim, substância e riqueza aos jornais. Talvez, assim, tenhamos novamente excelentes jornalistas provindos de outras áreas, como Helio Fernandes, Rui Barbosa, Afonso Arinos, Barbosa Lima Sobrinho, Carlos Lacerda, etc., que hoje, estariam, pela atual regulamentação, impedidos de exercer a profissão. Mas, claro que isso não pode ser feito de uma forma açodada e sem critérios. A solução mais razoável, enquanto não se pode renacionalizar e desprivatizar os próprios jornais (uma medida estrutural), parece ser mesmo o que está cogitando o ministro da Educação: os profissionais de qualquer área, que se interessassem em exercer o jornalismo, fariam um curso de adaptação de seus próprios currículos às exigências mínimas do jornalismo. Seria uma espécie de curso de especialização, que daria direito aos formandos de exercerem o jornalismo. Esta solução meio que salomônica não resolveria a questão do controle privado sobre informações de interesse público, mas, com certeza, melhoraria bastante o nível dos atuais jornalistas.

Veja também o que escrevi sobre o assunto em 2001, no “Observatório da Imprensa”:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/iq3005200193.htm
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A Liberdade de Expressão e o Diploma

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